Na minha também não!
"Ninguém da família vai fazer campanha"
Ana Sá Lopes
Comentário
Público, 23 de Outubro de 2005
«Ontem, a primeira página do Expresso era dominada por uma notícia interessante: "Maria Cavaco Silva antecipa campanha presidencial do marido - One Man Show". O Expresso, que passou o "dia d" com o casal Cavaco e quatro netos, recolheu uma informação preciosa da mulher do candidato a Presidente: "Ninguém da família vai fazer campanha".
A possibilidade de desenvolver uma qualquer mitologia, política ou outra, passa por criar o efeito de "verosimilhança". Não interessa se for falso, desde que seja verosímil. A ideia de verdade não é para aqui chamada, nem nunca foi. De resto, a verdade obriga a um grande esforço de recolha de elementos e não tem lugar no tempo veloz da tomada de uma decisão política (que, como toda a gente sabe, é uma decisão que resvala habitualmente para o campo da irracionalidade, próprio da tomada de uma decisão afectiva).
É no efeito de verosimilhança, e não na velha dicotomia verdadeiro-falso, que se desenrola boa parte da acção política. Mas isto não é novo, está particularmente bem explicado nos "simulacros" de Baudrillard e, de resto, sempre assim foi, desde os primórdios da democracia romana.
A peça do Expresso de ontem é um monumento a essa "sabedoria". Não é qualquer sujeito político que põe a família a fazer campanha, abre as portas ao semanário mais vendido em Portugal, mostra os netos e as suas conversas com os netos, e consegue depois transmitir ao povo uma informação superior: "Ninguém na família vai fazer campanha". É quase comovente a ingenuidade colectiva que leva a um assentimento perante a formulação que se anula a si própria. O acontecimento revelado pelo Expresso - Cavaco a explicar aritmética aos netos: "Se o João tem sete balões e dá três à Maria com quantos fica?" e Maria a esclarecer que "se for letras é com a avó", a família fotografada feliz na primeira página - convive serenamente com a tonitruante declaração de Maria: "Ninguém na família vai fazer campanha". O acto de campanha que enuncia a não campanha pode ficar nos anais do "marketing". A mensagem que está subjacente é exactamente a mesma do famoso vídeo Dinis-Bárbara-Carrilho, com a diferença de que Cavaco Silva percebe muito mais do assunto e não leva o recato do lar para a apresentação da candidatura. Mostra-o, simplesmente, ao Expresso. "One man show", é Maria quem o diz.
A mitologia cavaquista - e a adesão popular que conseguiu durante quase 10 anos - é um dos fenómenos mais interessantes da política contemporânea portuguesa. Vinte anos depois de ter chegado ao poder com a aura de "político não profissional" e "especialista em finanças", Cavaco Silva regressa invocando a sua categoria de "político não profissional" e "especialista em finanças". É como se o hiato de dez anos em que Cavaco Silva esteve afastado da vida política activa, depois de ter sido derrotado nas presidenciais por Jorge Sampaio, tivessem o condão de apagar todo o "disco rígido" do passado profissional de Cavaco Silva enquanto político e enquanto gestor de finanças do país. Ao candidato só faltou, no Centro Cultural de Belém, vestir a toga branca e virginal com que os candidatos ao senado de Roma se passeavam na rua de modo a ser facilmente identificados. O cavaquismo nunca existiu e o disco rígido nacional, aparentemente, foi destruído por uma qualquer incapacidade do cérebro informático.»
«Ontem, a primeira página do Expresso era dominada por uma notícia interessante: "Maria Cavaco Silva antecipa campanha presidencial do marido - One Man Show". O Expresso, que passou o "dia d" com o casal Cavaco e quatro netos, recolheu uma informação preciosa da mulher do candidato a Presidente: "Ninguém da família vai fazer campanha".
A possibilidade de desenvolver uma qualquer mitologia, política ou outra, passa por criar o efeito de "verosimilhança". Não interessa se for falso, desde que seja verosímil. A ideia de verdade não é para aqui chamada, nem nunca foi. De resto, a verdade obriga a um grande esforço de recolha de elementos e não tem lugar no tempo veloz da tomada de uma decisão política (que, como toda a gente sabe, é uma decisão que resvala habitualmente para o campo da irracionalidade, próprio da tomada de uma decisão afectiva).
É no efeito de verosimilhança, e não na velha dicotomia verdadeiro-falso, que se desenrola boa parte da acção política. Mas isto não é novo, está particularmente bem explicado nos "simulacros" de Baudrillard e, de resto, sempre assim foi, desde os primórdios da democracia romana.
A peça do Expresso de ontem é um monumento a essa "sabedoria". Não é qualquer sujeito político que põe a família a fazer campanha, abre as portas ao semanário mais vendido em Portugal, mostra os netos e as suas conversas com os netos, e consegue depois transmitir ao povo uma informação superior: "Ninguém na família vai fazer campanha". É quase comovente a ingenuidade colectiva que leva a um assentimento perante a formulação que se anula a si própria. O acontecimento revelado pelo Expresso - Cavaco a explicar aritmética aos netos: "Se o João tem sete balões e dá três à Maria com quantos fica?" e Maria a esclarecer que "se for letras é com a avó", a família fotografada feliz na primeira página - convive serenamente com a tonitruante declaração de Maria: "Ninguém na família vai fazer campanha". O acto de campanha que enuncia a não campanha pode ficar nos anais do "marketing". A mensagem que está subjacente é exactamente a mesma do famoso vídeo Dinis-Bárbara-Carrilho, com a diferença de que Cavaco Silva percebe muito mais do assunto e não leva o recato do lar para a apresentação da candidatura. Mostra-o, simplesmente, ao Expresso. "One man show", é Maria quem o diz.
A mitologia cavaquista - e a adesão popular que conseguiu durante quase 10 anos - é um dos fenómenos mais interessantes da política contemporânea portuguesa. Vinte anos depois de ter chegado ao poder com a aura de "político não profissional" e "especialista em finanças", Cavaco Silva regressa invocando a sua categoria de "político não profissional" e "especialista em finanças". É como se o hiato de dez anos em que Cavaco Silva esteve afastado da vida política activa, depois de ter sido derrotado nas presidenciais por Jorge Sampaio, tivessem o condão de apagar todo o "disco rígido" do passado profissional de Cavaco Silva enquanto político e enquanto gestor de finanças do país. Ao candidato só faltou, no Centro Cultural de Belém, vestir a toga branca e virginal com que os candidatos ao senado de Roma se passeavam na rua de modo a ser facilmente identificados. O cavaquismo nunca existiu e o disco rígido nacional, aparentemente, foi destruído por uma qualquer incapacidade do cérebro informático.»
Lx
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